Publicado em 28 de abril de 2025
Invisível e essencial: o trabalho de cuidado, sustentado majoritariamente por mulheres negras, segue desvalorizado e alimenta a engrenagem da desigualdade estrutural. É hora de colocar o cuidado no centro da economia e da justiça social.
Escrito por Patrícia Maria – patricia@programazunne.com.br
Socióloga e Gestora do Zunne – Programa de Impacto
28 de Abril de 2025
A responsabilidade do cuidado é frequentemente associada às mulheres, perpetuando a ideia de que cuidar é uma habilidade feminina inata e ausente nos homens. Essa dinâmica é reforçada pela educação recebida, que historicamente atribui às mulheres o papel de cuidadoras. No contexto brasileiro, marcado pela escravidão, essa realidade se intensifica, impondo às mulheres negras um dever quase obrigatório de cuidar. A economia do cuidado analisa todas as atividades essenciais para a reprodução social e o bem-estar coletivo, como o trabalho doméstico e o cuidado com crianças, idosos e pessoas com deficiência. Essas atividades, embora fundamentais, são desvalorizadas no sistema econômico formal e recaem desproporcionalmente sobre as mulheres.
Muitas vezes, o trabalho do cuidado é romantizado, como se fosse apenas uma demonstração de afeto – “quem ama, cuida”. Mas e quem cuida de quem cuida? Falar de cuidado como um trabalho que deveria ser remunerado ou amparado por políticas públicas ainda parece tabu. O conceito de economia do cuidado surgiu para dar visibilidade a esse trabalho essencial. Ele pode ser classificado em duas formas: remunerado, presente em profissões como cuidadoras e trabalhadoras domésticas, e não remunerado, realizado dentro dos lares sem qualquer compensação financeira. No Brasil, onde as desigualdades de gênero e raça se entrelaçam, as mulheres assumem a maior parte dessas responsabilidades, sendo duplamente penalizadas – pelo gênero e pela raça.
O relatório “Tempo de cuidar”, da Oxfam, revela que mulheres e meninas ao redor do mundo dedicam 12,5 bilhões de horas diárias ao trabalho de cuidado não remunerado. Se esse tempo fosse remunerado, representaria um valor global de US$ 10,8 trilhões por ano – mais de três vezes o faturamento da indústria de tecnologia. No Brasil, 90% do trabalho de cuidado é feito informalmente pelas famílias, sendo que 85% desse total recai sobre mulheres. A maior parte desse trabalho sequer é reconhecida, gerando um ciclo de exploração e desigualdade.
Os números escancaram um sistema econômico sexista e falho, que valoriza mais a concentração de riqueza do que o trabalho essencial para o funcionamento da sociedade. A mesma Oxfam aponta que os 22 homens mais ricos do mundo possuem mais riqueza do que todas as mulheres do continente africano. No Brasil, mulheres negras estão majoritariamente em trabalhos precários, informais e mal remunerados, como o emprego doméstico – uma herança direta da escravidão. Embora a PEC das Domésticas (2013) tenha garantido alguns direitos, a informalidade e os baixos salários ainda são uma realidade para muitas trabalhadoras negras.
A sobrecarga de trabalho, além de gerar desigualdade salarial, afeta diretamente a saúde física e mental das mulheres, especialmente as mulheres negras, restringindo seu acesso à educação, lazer e oportunidades de ascensão social. A sociedade impõe às mulheres negras o papel de cuidadoras, limitando seu acesso a espaços de poder e ao mercado de trabalho formal. Enquanto isso, os homens continuam ocupando a maioria dos cargos de liderança e poder econômico, com apenas 18% dos ministérios e 24% dos parlamentos no mundo liderados por mulheres.
Essa lógica de desigualdade não apenas impacta as mulheres no presente, mas perpetua ciclos de pobreza e vulnerabilidade para futuras gerações. Crianças criadas em ambientes onde o cuidado não é reconhecido como trabalho tendem a reproduzir essa mentalidade, dificultando ainda mais a luta por equidade. Além disso, o estresse crônico gerado pela sobrecarga de trabalho doméstico e profissional tem sido associado a problemas de saúde como hipertensão, depressão e ansiedade, afetando diretamente a qualidade de vida das mulheres negras.
Diante desse cenário, a Oxfam propõe que os governos adotem medidas para construir uma economia feminista e mais justa. Isso inclui investir em sistemas nacionais de cuidado, adotar políticas de tributação progressiva e criar legislação específica para valorizar esse trabalho. No Brasil, a ausência de políticas públicas eficazes agrava a desigualdade, reforçando a dependência econômica das mulheres negras. A falta de creches públicas, serviços de apoio a idosos e divisão igualitária das tarefas domésticas são barreiras que impedem muitas mulheres de avançar profissionalmente e conquistar autonomia financeira.
Para mudar essa realidade, algumas estratégias são fundamentais:
Outra iniciativa relevante é o fortalecimento das redes comunitárias de apoio, que historicamente têm sido fundamentais para minimizar os impactos da desigualdade. Mulheres negras organizam coletivos, associações e redes de solidariedade que garantem suporte emocional, material e financeiro umas às outras. Essas práticas, inspiradas em valores africanos como o Ubuntu – “eu sou porque nós somos” –, demonstram que a coletividade pode ser um caminho para a transformação social.
Desta forma, abordando a economia do cuidado, não estamos meramente debatendo estatísticas e políticas, mas sim as vivências, os cotidianos e as trajetórias de mulheres que sustentam a sociedade através de um trabalho que permanece invisível. Presencio diariamente a realidade de mulheres que acumulam múltiplas jornadas, que iniciam seus dias antes do amanhecer para atender às necessidades do lar, dos filhos, dos idosos, e que ainda precisam batalhar por um espaço no mercado de trabalho. Esse cuidado, que deveria ser uma responsabilidade compartilhada por todos, ainda recai de forma desigual sobre elas. E ao observarmos a situação das mulheres negras, essa sobrecarga se intensifica, expondo um ciclo de injustiças que se perpetua através das gerações. É imperativo que essa realidade seja trazida para o centro do debate público, e que se exija o reconhecimento do cuidado como parte essencial da economia. Afinal, sem ele, a sociedade não prospera.